
Trabalho escravo pode barrar exportações de café do Brasil para EUA
Petição enviada pela organização Coffee Watch para a alfândega americana pede o bloqueio da importação de café pelas empresas Starbucks, Nestlé, JDE, Dunkin’, Illy e McDonald’s por ligações com casos de trabalho escravo
UMA DENÚNCIA REGISTRADA quinta-feira (24) na Alfândega e Proteção de Fronteiras dos EUA (CBP, na sigla em inglês) pede a suspensão das importações de café com origem no Brasil realizadas pelas multinacionais Starbucks, Nestlé, Jacobs Douwe Egberts (JDE), Dunkin’, Illy e McDonald’s.
Segundo a denúncia, realizada pela organização Coffee Watch, o café comercializado pelas empresas no mercado americano está contaminado por casos de trabalho escravo. O documento cita quatro resgates de trabalhadores ocorridos entre 2023 e 2024 em fazendas de Minas Gerais que, de acordo com a instituição, fazem parte da cadeia de fornecedores das empresas mencionadas.
A denúncia da Coffee Watch ao CBP tem como base a Seção 307 da Lei Tarifária de 1930, uma lei federal americana que proíbe a importação de produtos feitos com trabalho escravo. O CBP é responsável pela regulação dos produtos que entram no país, podendo, a partir de denúncias, barrar a importação de determinados ítens.
Os EUA já emitiram algumas ordens para impedir a entrada no país de mercadorias suspeitas de violar essa norma. Em 2021, por exemplo, o CBP proibiu a importação de algodão e tomate oriundos da região de Xinjiang, na China, com base em alegadas evidências de trabalhos forçados impostos à minoria étnica uigur que vive na região.
“Essas empresas mantêm conscientemente um sistema de trabalho forçado, tráfico de pessoas e trabalho infantil forçado, do qual continuarão se beneficiando até que sejam forçadas a interrompê-lo”, argumenta a Coffee Watch na denúncia.
Entre os indícios das violações listadas no documento estão reportagens e pesquisas publicadas pela Repórter Brasil, como o relatório “Por trás do café da Starbucks”, que mostra relações entre fazendas que ostentam o selo C.A.F.E. Practices, programa de aquisição ética de café da multinacional americana, e flagrantes de trabalho escravo. Também são citadas investigações publicadas pelas organizações Oxfam, Danwatch e Conectas que, de acordo com a denúncia, mostram as relações entre fornecedores das empresas citadas e a exploração do trabalho.
“Não estamos falando de casos isolados. Estamos falando de um padrão disseminado e sistemático que atravessa décadas – e que continua até hoje”, analisa Etelle Higonnet, fundadora da ONG Coffee Watch, em entrevista para a Repórter Brasil.
Os EUA são o principal destino do café exportado pelo Brasil. Em 2024, o país absorveu 16% das exportações nacionais, segundo dados divulgados pelo Conselho dos Exportadores de Café do Brasil (Cecafé).
Cooperados da Cooxupé
Na denúncia, a Coffee Watch lista cinco casos de trabalho escravo em fazendas de produtores mineiros. À época do resgate, segundo a organização, eles eram cooperados da Cooxupé (Cooperativa Regional de Cafeicultores em Guaxupé). A Coffee Watch aponta que a Cooxupé é uma das fornecedoras de café das multinacionais denunciadas.
“Essas empresas compram grãos de café colhidos no Brasil ‘total ou parcialmente’ por meio de trabalho forçado e importam os grãos para os Estados Unidos”, diz trecho da petição, acessada pela Repórter Brasil. “Portanto, instamos a CBP a emitir uma Ordem de Liberação de Retenção (“WRO”) para todo o café e produtos de café importados pela Starbucks, Nestlé, JDE, Dunkin’, Illy e McDonald’s importados do Brasil para os Estados Unidos, especialmente os produtos da Cooxupé e das cinco fazendas de café mencionadas acima”, complementa outro trecho da denúncia.
Um dos flagrantes de trabalho escravo mencionados pela ONG ocorreu nos sítios Córrego do Jacu e Paquera, em Juruaia (MG). As duas áreas, de propriedade do cafeicultor Marcos Florio de Souza, foram inspecionadas no dia 17 de junho de 2024. No total, seis trabalhadores foram resgatados de condições análogas à escravidão, entre eles um adolescente de 16 anos.
À época do flagrante, a Repórter Brasil mostrou que o produtor era cooperado da Cooxupé, informação confirmada pela cooperativa. O produtor Marcos Florio de Souza foi incluído na mais recente atualização da Lista Suja do trabalho escravo, divulgada pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) em 9 de abril.
A reportagem tentou contato com Marcos de Souza, por meio de sua advogada, mas não houve um posicionamento até o fechamento desta reportagem.
Em nota, a Starbucks afirmou que “as alegações apresentadas não têm mérito” e irá “defender vigorosamente a marca”. A multinacional afirma que não compra café de todas as fazendas integradas à Cooxupé, que conta com mais de 19 mil cooperados, segundo a companhia. “A Starbucks adquire café de uma pequena fração dessas fazendas, e somente daquelas que foram verificadas por meio do nosso programa C.A.F.E. Practices – um dos mais rigorosos do setor, continuamente aprimorado desde sua criação, em 2004”, complementou a multinacional.
A Nestlé informou que, quando recebe alegações de descumprimento em seus padrões, trabalha junto aos fornecedores para investigar e tomar as medidas necessárias. A multinacional suíça afirmou também que “está comprometida em promover condições dignas de trabalho e em defender os direitos humanos em toda sua cadeia de suprimentos, trabalhando ativamente para prevenir violações trabalhistas”.
A companhia JDE respondeu que não recebeu nenhum café proveniente dos produtores mencionados na denúncia e listados na Lista Suja do trabalho escravo. Também disse que não divulga informações sobre fornecedores “para proteger a integridade do nosso negócio e da nossa rede de fornecimento”. A empresa informou que tem “um forte compromisso com a aquisição responsável e a preservação dos direitos humanos em toda a cadeia de suprimentos”.
A Cooxupé e as multinacionais Dunkin’, Illy e McDonald’s também foram procuradas, mas não responderam imediatamente aos questionamentos enviados pela reportagem. O espaço segue aberto para manifestações futuras.
Liberação condicionada a mudanças
Além da emissão de uma ordem de retenção de importação para todo o café e produtos de café importados pelas seis multinacionais, a ONG pede que a liberação das importações esteja condicionada à adequação das empresas a critérios de monitoramento das cadeias produtivas e à exigência de condições adequadas de trabalho entre seus fornecedores.
“O sistema atual de investigações do governo no Brasil não tem sido suficiente para dissuadir a indústria”, aponta Higonnet. “Consideramos que, para provocar uma mudança sistêmica e uma reforma profunda, seria necessário adotar uma nova abordagem, que responsabilizasse a indústria do café pela escravidão e pelo trabalho forçado no Brasil”, complementa.
Ação judicial
No mesmo dia da denúncia à CBP, a Starbucks foi alvo de uma ação ajuizada no Tribunal de Columbia, no estado da Carolina do Norte, pela ONG International Rights Advocates (IRAdvocates).
Na ação, a IRAdvocates representa oito trabalhadores, entre eles um adolescente, resgatados de condições análogas à escravidão entre 2023 e 2024 em fazendas de Minas Gerais. As propriedades, as mesmas citadas na denúncia da Coffee Watch, são também apontadas como pertencentes a cooperados da Cooxupé, fornecedora da Starbucks.
A ONG alega que os oito trabalhadores foram traficados e submetidos a trabalhos forçados nas propriedades e pede que a Starbucks os indenize.
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