A lógica da estratégia militar russa e seu impacto na segurança global
“A estratégia militar russa pressupõe ser o país militarmente inferior em uma guerra regional ou em larga escala contra um adversário tecnologicamente superior (OTAN). Por isso, a integração de meios não militares, convencionais e nucleares é fundamental na condução da guerra e para a dissuasão estratégica”, escreve o especialista
Desde o dia 24 de fevereiro de 2022, o Brasil acompanha uma guerra que anteriormente parecia distante e desconexa de sua realidade. Um conflito que começou, de fato, em 2014, mas que permanecia em estado latente. De repente, tropas russas invadem a Ucrânia e começamos a receber uma enxurrada de informações desencontradas, opiniões divergentes e pontos de vista conflitantes. Muitos passaram a perguntar: o que isso tem a ver conosco? e para onde isso tudo vai?
A incerteza que se espalhou pelo mundo, atingiu o país em cheio e já pode ser sentida no bolso do cidadão comum. Sendo assim, torna-se urgente entender a lógica por trás da invasão militar da Ucrânia pela Rússia e procurar saber de onde vêm as ideias que desencadearam os eventos que estamos testemunhando. E, sobretudo, precisamos ter uma ideia de para onde os eventos podem nos conduzir.
A seguir, brevemente, mencionaremos dois documentos que sintetizam cinco conceitos fundamentais que ajudam a entender a lógica da estratégia militar russa e nos dão uma ideia de três prováveis consequências que podem impactar a segurança global, particularmente nas democracias ocidentais.
Dois documentos
As políticas públicas de segurança e defesa da Rússia são consolidadas em cinco documentos: 1) a Doutrina Militar (2014); a Estratégia de Segurança Nacional (2015); o Conceito de Política Externa (2016); a Estratégia Naval (2017); e os Princípios da Estratégia de Dissuasão Nuclear (2020). Ainda que todos sejam muito importantes, as respostas às perguntas que queremos podem ser encontradas na Doutrina Militar, de 2014, e na Estratégia de Segurança Nacional, de 2015, ambos elaborados pelo Estado-Maior Geral das Forças Armadas, que, aliás, têm um papel central na crise. O poder político do Ministério da Defesa russo e do Estado-Maior Geral não tem comparação com nenhuma democracia ocidental.
1. A Doutrina Militar russa de 2014
A doutrina foi publicada no mesmo ano em que a Rússia incorporava a Crimeia ao seu território e apoiava o separatismo ucraniano nas regiões de Donetsk e Luhansk. A doutrina parte ideia de que, em razão da geografia russa, as forças militares são diluídas e podem ter que enfrentar ameaças de várias direções, ao mesmo tempo. Sendo assim, torna-se necessário o emprego concentrado e maciço de artilharia e foguetes, bem como de forças especiais associadas aos serviços de inteligência – sobretudo o GRU (inteligência militar) e o FSB (contrainteligência interna). Em 2013, o Chefe do Estado-Maior Geral Valery Gerasimov, em uma matéria publicada no Correio Militar-Industrial, esclareceu que o conceito russo de guerra deveria, então, abranger ferramentas não militares e políticas. Esse tipo de ação tem sido observado, desde 2014 na Ucrânia que tem servido como um laboratório dessa concepção de guerra.
2. A Estratégia de Segurança Nacional de 2015
A Estratégia de Segurança Nacional de 2015 parte de alguns pressupostos fundamentais que reforçam a doutrina e as ideias de Gerasimov. O mais importante deles é o de que a Rússia sofre a ameaça de uma “guerra híbrida” e que o Ocidente promove campanhas de desinformação com a intenção de prejudicar interesses russos e expandir a influência da OTAN. É interessante como os próprios russos usam o conceito de guerra híbrida, que analistas ocidentais atribuem a eles, como a principal ameaça existencial contra o país. Fica claro o medo ancestral dos russos de terem seu território invadido e dividido.
Cinco conceitos
O general Gerasimov considera que a guerra moderna é uma atividade complexa e interconectada definida por uma mistura de táticas não-cinéticas e força militar convencional. Essa visão sistêmica envolve o emprego de todos os fatores do poder como ferramentas de guerra. A visão holística da guerra, extrapolando o campo militar, muda completamente a forma como os meios são utilizados e tornam a guerra atemporal e ilimitada no espaço, não respeitando fronteiras físicas.
Vários conceitos são propostos nos documentos estratégicos seguindo a linha de pensamento de Gerasimov. No entanto, cinco ideias são transversais e impactam todos os demais, são eles:
1. Estratégia de Defesa Ativa
Conceito estratégico que integra medidas preliminares para prevenir o conflito e abrange conceitos operacionais que buscam negar ao oponente vitória decisiva no período inicial da guerra, degradando e desorganizando seus esforços enquanto prepara as condições para a contraofensiva. A estratégia ativa prevê intenso trabalho de inteligência e operações psicológicas. Exercícios militares, testes de armas e demonstrações de força são feitas para demonstrar capacidade de destruição e desencorajar a escalada de crise.
2. Riscos e Ameaças
A Doutrina Militar de 2014 divide as ameaças à segurança da Rússia em duas categorias: os riscos militares e as ameaças militares, propriamente ditas. Os riscos militares são de natureza menos grave, enquanto as ameaças militares são aquelas que podem levar a um conflito militar, de fato. É importante entender que a mera existência do risco militar já enseja o emprego do poder nacional, ou seja, a percepção de risco pode ser permanente, o que leva a um estado de alerta constante e emprego de meios não cinéticos (informações).
3. Nova Geração da Guerra
O conceito de Nova Geração da Guerra define que o a guerra moderna engloba uma visão sistêmica da guerra que inclui ferramentas políticas, militares, informações em todas as situações e áreas. Esse conceito extrapola a ideia tradicional de guerra circunscrita a um “teatro de operações” somente militar. A ideia de Nova Geração da Guerra seria a solução russa à Guerra Híbrida que o Ocidente usa contra o país.
4. Operações de Influência
Subordinação das operações militares “convencionais”, de natureza cinética, às operações de informações, que tem a finalidade de mudar a percepção do inimigo. Campanhas permanentes de desinformação em sociedades que representem risco à segurança nacional russa seriam as principais ferramentas. Esse tipo de operação pode ser observado sobretudo com o emprego de veículos de mídia que difundem valores russos em idiomas diversos para conformar a percepção externa.
5. Guerra e não-Guerra
A subordinação das operações militares às operações de influência (ou de informação) faz com que os limites entre guerra e não guerra desapareçam e as operações caiam em uma zona cinzenta. A ideia nesse caso é confundir e evitar retaliações. No caso específico da invasão russa da Ucrânia, esse conceito ficou claro quando o governo russo disse estar em meio a uma “operação especial” para desarmar e “desnazificar” a Ucrânia.
Três consequências
Se a lógica da doutrina militar russa prevalecer e for adotada por outros países com interesse em se tornar hegemônicos regionalmente, como parece ser caso da Rússia, as normas tradicionais conhecidas que tentam limitar as consequências dos conflitos armados podem perder valor. Além disso, três riscos que podem impactar severamente a estabilidade global, sobretudo nas democracias ocidentais:
1. Controle estatal sem limite
Como já se observa na Rússia, a ideia de expandir o conceito de guerra, abrangendo o aspecto informacional, pode levar estados com governos autoritários a controlar os meios de comunicação de massa, com a finalidade de promover campanhas de influência (propaganda). Além disso, o acesso às redes sociais pode ser controlado e cidadãos podem ser perseguidos pelo estado por demonstrarem ideias “nocivas”.
2. Guerras sem declaração
Outra possibilidade importante seria governos autoritários desenvolverem operações contra adversários, sobretudo no campo político, visando desestabilizá-los, como, por exemplo, interferindo em processos eleitorais. A admissão do uso de meios não militares tornaria desnecessário uma declaração de guerra.
3. Guerra total na Era da Informação
As duas guerras mundiais do século XX foram caracterizadas pelo emprego maciço dos meios de produção industrial para alimentar as máquinas de guerra. Aparentemente, o que estamos vendo no caso da crise ucraniana é um fenômeno parecido, mas com a uso das ferramentas da era da informação.
Em síntese, não há mais como considerar que estamos protegidos ou isentos dos efeitos de conflitos distantes. Em um mundo hiperconectado todos estamos envolvidos direta ou indiretamente neles. Daí, a importância de ter consciência de que as ideias contidas nas políticas estatais de segurança e defesa são tão importantes, sobretudo quando se trata de governos autoritários.
Por Daniel Tavares* / obrasilianista
*Daniel Tavares é coronel (reserva) do Exército Brasileiro e analista militar da consultoria Arko Advice. É formado pela Academia Militar das Agulhas Negras e mestre em Ciências Militares com especialização em Política, Estratégia e Alta Administração pela Escola de Comando e Estado-Maior do Exército e Escola Superior de Guerra. Foi oficial do Gabinete do Comandante do Exército e chefiou a Divisão de Inteligência do Centro de Inteligência do Exército, entre 2017 e 2019. Foi analista de informações do Joint Mission Analysis Center, da Missão das Nações Unidas para Estabilização do Haiti (2014-2015) e comandou o 10º Batalhão de Infantaria Leve (Montanha), em Juiz de Fora, MG.