
Clima instável afeta colheitas e a saúde dos produtores
Geadas, secas e incertezas climáticas vêm comprometendo o trabalho e o emocional de quem vive da terra. Em Minas Gerais, um produtor de café precisou recomeçar do zero após ver a lavoura ser devastada em uma única madrugada.
“Num dia estava linda, no outro, torrada pela geada, sem ficar um só pé verde.” O relato do cafeicultor Márcio Eduardo Viana, de Divisa Nova (MG), é carregado de memória e resiliência. Aos 12 anos, ele começou a lidar com o café em uma pequena área de 500 covas que o pai lhe deu. Hoje, administra 50 hectares entre terras próprias e arrendadas. A cafeicultura é mais que um trabalho: é uma herança de 50 anos da família, que ele tenta passar ao filho, que é mais inclinado à pecuária do que às lavouras.
Em 2021, Márcio viveu o momento mais difícil da sua trajetória. “Fomos atingidos pela geada. Fiquei muito descapitalizado. Tinha uma expectativa alta de carga para 2022, mas não colhi nem 35% do que era esperado”, conta. E a sequência de adversidades não parou por aí. Entre geadas, secas e falta de chuva na fase da granação do café, ele estima ter perdido quase um ano e meio de colheita nos últimos quatro anos.
Apesar das dificuldades, Márcio afirma que nunca pensou em desistir. “O café corre nas veias. É o que sei fazer. Momentos difíceis sempre existiram, e não é agora que vou parar. Temos que nos superar a cada dia. Com fé em Deus, tudo suportamos e superamos.”
Esse espírito de resistência, no entanto, nem sempre vem acompanhado de um suporte emocional adequado. Segundo a psicóloga Aline Graffiette, o produtor rural é, muitas vezes, um “estressado crônico”, termo usado para definir alguém que vive em estado de alerta permanente.
“Apesar de crescerem lidando com a incerteza climática, eles depositam toda a expectativa na produção. Quando algo dá errado, o baque emocional é forte. Um sinal evidente desse desgaste é o aumento do consumo de álcool, que pode evoluir para quadros de alcoolismo, afetando não só o produtor, mas toda a família”, explica Aline.
A psicóloga destaca que há uma resistência cultural à ideia de cuidado emocional no campo. “Embora não tenha sido feita uma distinção direta entre perfis econômicos, observa-se que os produtores, de modo geral, não se reconhecem como pessoas que precisam cuidar da saúde mental. É uma população mais ‘roots’, com menor familiaridade ou abertura para lidar com questões emocionais. Essa resistência cultural pode torná-los mais vulneráveis, independentemente do porte da propriedade”, analisa.
Para quebrar esse ciclo, Aline defende iniciativas que levem informação de qualidade ao campo de forma sensível e respeitosa. “As rodas de conversa são uma excelente estratégia. É nesse espaço que o produtor se identifica com o outro, reconhece os próprios limites e passa a considerar a possibilidade de buscar apoio.”
A lavoura e a mente sob pressão
O engenheiro agrônomo Gustavo Soares Wenneck afirma que o cenário é preocupante: “A instabilidade climática tem afetado diretamente o planejamento agrícola. Eventos extremos como estiagens prolongadas, veranicos e geadas têm sido mais frequentes e intensos, dificultando a definição de janelas de plantio e comprometendo a produtividade.”
Na safra 2024/2025, ele cita o exemplo da região noroeste do Paraná, onde a soja foi semeada com atraso devido à seca, o que impactou o milho da segunda safra. “Além disso, dois dias consecutivos de geada afetaram lavouras implantadas tardiamente, inclusive hortaliças, frutas e pastagens. Na pecuária, produtores tiveram que investir em alimentação suplementar pela falta de pasto.”
Essas perdas acumuladas repercutem diretamente na saúde emocional dos agricultores, afirma Gustavo. “Muitos produtores têm a renda da família totalmente dependente da lavoura. A frustração se acumula e afeta o convívio familiar, o bem-estar e a motivação para continuar na atividade.”
Caminhos para resistir e recomeçar
Para enfrentar esse cenário, Gustavo aponta algumas estratégias fundamentais: planejamento agrícola com base em dados climáticos atualizados, uso de tecnologias de monitoramento e estações meteorológicas, diversificação da produção para diluir riscos, manejo do solo com práticas conservacionistas, como rotação de culturas e plantio direto, respeito às janelas de plantio e escolha de cultivares adaptadas ao clima da região, adesão ao seguro rural para mitigar prejuízos econômicos.
Mas ele reconhece que a instabilidade crescente do clima exige mais que esforço individual. “É necessário ampliar o acesso à informação, oferecer assistência técnica de qualidade e fortalecer políticas públicas que ajudem a resiliência do produtor rural.”
Além disso, defende um olhar mais amplo sobre o que significa cuidar do campo. “Hoje, a assistência técnica é voltada para o manejo agronômico. Mas o ideal seria ter equipes multidisciplinares que incluam psicólogos, assistentes sociais e orientadores financeiros. O campo precisa de apoio completo, não só na terra, mas também na alma de quem cuida dela.”
Raízes profundas
Enquanto isso, Márcio Viana segue recomeçando, sempre. “O café está na minha história. Já vivi muita coisa difícil, e não é agora que vou parar. A gente planta fé junto com o café. Se der certo, agradece. Se não der, planta de novo.”
É dessa resiliência que o Brasil rural é feito. Mas até o mais forte dos produtores precisa de suporte e de espaço para dizer que está cansado. Afinal, por trás da terra que alimenta o país, existe gente. E gente também precisa florescer.
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